domingo, 30 de outubro de 2016

Drogas vasoativas em revisão – Parte 1.


O choque circulatório é a síndrome resultante da falência do sistema cardiovascular em manter a perfusão tecidual adequada. A prioridade inicial do tratamento é manter a estabilidade hemodinâmica, enquanto a etiologia do choque é investigada e o tratamento definitivo é providenciado. O suporte hemodinâmico é baseado principalmente em três intervenções: reanimação volêmica, vasopressores e inotrópicos. Quando a administração de fluidos não consegue restaurar a pressão arterial e a perfusão tecidual, a terapia com drogas vasoativas deve ser considerada (1).


São drogas frequentemente usadas no ambiente de terapia intensiva, já que o choque circulatório pode acometer até um terço dos pacientes que necessitam de cuidados intensivos. O choque séptico é o mais frequente com 62% dos casos, seguido pelo cardiogênico (16%) e hipovolêmico (16%), conforme demonstrou o estudo SOAPII que incluiu 1679 pacientes e comparou noradrenalina com dopamina em pacientes com choque circulatório (2).

Os agonistas adrenérgicos são as drogas vasoativas de primeira linha devido ao seu rápido início de ação, alta potência e meia-vida curta, que permite o ajuste fácil da dose. Agem por meio dos receptores adrenérgicos no coração e vasos sanguíneos. Os receptores alfa 1 presentes no músculo liso dos vasos aumentam a resistência vascular sistêmica (RVS) por vasoconstrição arteriolar mesentérica, renal e de pele. Pela vasoconstrição venosa também redistribuem o sangue da periferia e da circulação mesentérica para circulação central. Os receptores beta 2 exercem efeitos opostos aos alfa 1, tendendo a reduzir o tônus vascular, de forma a vasodilatar principalmente na musculatura esquelética. Os receptores beta 1 no miocárdio, e em menor extensão os beta 2, aumentam a frequência e contratilidade cardíaca (1).

Drogas com propriedades vasopressoras são usadas primariamente para restaurar a pressão arterial por meio de vasoconstrição arteriolar (receptores alfa 1), enquanto drogas inotrópicas são usadas primariamente  para aumentar o débito cardíaco (DC) por por meio do aumento da contratilidade e frequência cardíaca (FC) (receptores beta 1 e 2). Sabendo-se que o DC está diretamente relacionado com o volume sistólico (VS) e a FC (DC = VS x FC), fica fácil perceber o papel desta última variável no contexto. Porém não se pode esquecer que frequências muito elevadas são prejudiciais e podem levar a redução do DC caso gerem limitação do enchimento diastólico (1).

A maioria das drogas adrenérgicas usadas clinicamente combinam efeitos na contratilidade cardíaca e tônus vascular. Conhecer as propriedades de cada uma é importante para correta indicação. Na prática é conveniente lembrar que os efeitos esperados para cada droga são teóricos e pode haver grande variabilidade na resposta entre os pacientes, que depende da reserva cardiovascular, fisiopatologia do choque, uso concomitante de outras drogas e da própria resposta individual (1).

A seguir serão descritas as principais drogas vasoativas usadas em terapia intensiva. Para tal optamos por dividi-las didaticamente em drogas com efeito inotrópico e vasodilatador, inotrópico e vasoconstritor, vasoconstritor exclusivo e vasodilatador exclusivo (Figuras 1 e 2) (1).


1- Drogas com propriedades inotrópicas e vasodilatadoras.

Dobutamina. A dobutamina geralmente é o inotrópico de escolha para aumentar o DC. Tem forte atividade em receptores beta 1 e leve atividade em beta 2 e alfa 1. Produz elevações significativas no DC mesmo com doses baixas. Tende a provocar vasodilatação, exceto em doses altas (>10-15 mg/kg/min) quando o agonismo em receptores alfa 1 passa a ser proeminente. O efeito na pressão arterial tende a ser limitado e depende da circunstância em que é usada. Pode elevar a pressão arterial em situações de baixo DC e elevada RVS como no choque cardiogênico. Nos casos em que o efeito no débito é modesto e a queda na RVS é maior, como nos casos de choque distributivo ou hipovolemia, a tendência é de provocar hipotensão. Têm sido relatados efeitos na microcirculação independente de efeitos sistêmicos. Betabloqueadores, especialmente o carvedilol, pioram significativamente a resposta à dobutamina, havendo necessidade de doses altas para seus efeitos (1).

Milrinona. Seu mecanismo de ação é devido à inibição da enzima fosfodiesterase III citoplasmática, aumentando a disponibilidade de cálcio por redução da degradação do AMPc. Além da ação inotrópica, produz significante vasodilatação pulmonar e sistêmica. É a droga de escolha em pacientes com insuficiência cardíaca na presença de hipertensão pulmonar e disfunção de ventrículo direito. Pode ser útil quando os receptores beta estão sub-regulados ou em pacientes tratados com betabloqueadores. No entanto, a possibilidade de hipotensão limita seu uso em pacientes com choque. Além disso, a meia-vida da droga é longa (2-3h) e pode ser prolongada em pacientes com disfunção renal (4-6h) (1).  

Tanto a milrinona quanto a dobutamina carregam o risco de hipotensão por vasodilatação excessiva, arritmias e isquemia miocárdica. É importante ressaltar que o uso de inotrópicos está associado a maior mortalidade e eventos adversos em pacientes hospitalizados. Dessa forma, seu uso deve se restringir aos pacientes DC inadequado para manter oferta adequada de oxigênio aos tecidos (3-6).


Para acessar a Parte 2 deste texto clique AQUI.

Referências



3 comentários:

  1. Excelente, especialmente no que tange à sistematização, com clareza, da classificação das drogas vasoativas.

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  2. sou farmacêutico e adoro esse bloque, sigo e leio tudo que é publicado aqui. Tenho uma duvida ouço falar com na falta que a milrinona substitui a falta da DOBUTAMINA, essa afirmação é verdadeira ? em que situação posso utilizar somente milrinona?

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    1. Caro Fábio Bilac.

      Agradecemos a pergunta. Seu interesse pelo Blog só nos mostra que nosso objetivo de promover a discussão está sendo alcançado.

      Peço desculpas pela demora na resposta, mas antes tarde do que nunca não é mesmo, rs.

      A dobutamina e a milrinona são indicadas para uso intravenoso principalmente nos casos de insuficiência cardíaca descompensada. O critério para usar uma ou outra medicação vai depender da experiência do serviço, com alguns preferindo o uso de dobutamina devido ao seu custo mais acessível e outros preferindo a milrinona devido a seu menor potencial arritmogênico. A dobutamina tende a fazer mais taquicardia, podendo aumentar o consumo miocárdico. Já a milrinona tem maior potencial vasodilatador, podendo gerar mais instabilidade hemodinâmica quando comparada. Diferente da dobutamina, a milrinona é um inibidor seletivo da isoenzima fosfodiesterase III do AMP cíclico na musculatura cardíaca e vascular, e sua ação não sofre interferência pelo uso concomitante de betabloqueadores, tornando esta droga atrativa neste contexto (não sofre downregulation pelo uso concomitante de betabloqueadores). Também tem a vantagem de gerar vasodilatação pulmonar sendo interessante nos casos de hipertensão pulmonar associada.

      Então, respondendo a pergunta de forma mais objetiva, a milrinona pode SIM ser usada em substituição a dobutamina, mas isto vai depender da condição clínica do paciente (por exemplo: se hipertensão pulmonar talvez seja melhor associar milrinona), da disponibilidade da droga (mais cara que a dobutamina) e experiência do serviço.

      Por fim, para tornar a discussão mais interessante, seguem as recomendações do guideline americano de manejo da insuficiência cardíaca (ACCF / AHA [Yancy 2013]) para o uso de inotrópicos:
      - para manter a perfusão sistêmica e preservar as funções orgânicas em pacientes com choque cardiogênico até que este seja resolvido ou até que um tratamento definitivo seja realizado (ex: revascularização miocárdica, transplante cardíaco...) (Recomendação IC);
      - em pacientes com insuficiências cardíaca em estágio D e refratários à terapia medicamentosa como "terapia de ponte" para transplante cardíaco ou suporte circulatório mecânico (Recomendação IIa B);
      - manejo de curto prazo de pacientes hospitalizados com disfunção sistólica grave com pressão arterial baixa e débito cardíaco significativamente deprimido (Recomendação IIb B); e
      - para tratamento em longo prazo (terapia paliativa) de pacientes selecionados com insuficiência cardíaca de estágio D que não respondem à terapia medicamentosa e que não são candidatos a transplante cardíaco ou suporte circulatório mecânico (Recomendação IIb B).

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