Paciente do sexo feminino, 30
anos. Primeira gestação, a termo, relato de pré-natal sem intercorrências,
porém com relato de episódios de sangramento gengival e várias visitas ao hospital por dor abdominal, com pico hipertensivo
em uma delas.
Admitida no hospital com
história de contrações uterinas e sangramento vaginal. Em avaliação apresentava
dilatação máxima de colo uterino e
sangramento vaginal em pequena quantidade, evoluindo com parto vaginal. O
recém-nascido apresentou Índice de Apgar 3 e 6, líquido amniótico com mecônio
espesso (3+/4), sendo encaminhado a UTI neonatal.
Uma hora após o parto, a
paciente apresentou sangramento intenso através da sutura da episiotomia
paramediana. O útero estava contraído e foi encaminhada para ressutura no
centro cirúrgico. Após algumas horas, evoluiu
com náuseas e astenia. Apresentava-se taquicárdica (FC 117bpm, ritmo sinusal) e
hipotensa (PA 90/60mmHg), responsiva a expansão volêmica inicial. Notado discreto
sangramento vaginal e abaulamento de episiorrafia, sendo encaminhada a UTI.
Nos exames de admissão observado
queda importante de hemoglobina (Hb), coagulopatia, alterações de função renal
e hepática (Tabela 1), com escore SAPS 3 de 70 e SOFA de 10. Foi transfundida
(Tabela 1) e mantida em vigilância hemodinâmica e de sangramentos.
Realizada ultrassonografia
de abdome/transvaginal: fígado sem alterações; pequena quantidade de líquido
livre perihepático, periesplênico e em fossas ilíacas; útero globoso com
dimensões aumentadas, medindo 17,3 x 7,3 x 9,4 cm (volume 502 cm3);
ecotextura miometrial heterogênea e eco endometrial centrado, homogêneo, com
espessura de até 1,1cm.
No 2º pós-parto (PP) evoluiu
com choque refratário (noradrenalina 1,78 µg/kg/min e vasopressina 0,04 U/min)
e abaulamento de episiotomia de 4 cm. Mantinha frequentes episódios de hipoglicemia. Mesmo julgando se tratar de choque
distributivo com componente hipovolêmico pelo sangramento, foi iniciado antibiótico
terapêutico empírico pela gravidade do quadro. Realizada intubação orotraqueal
e encaminhada ao centro cirúrgico para drenagem de hematoma (achado
intra-operatório: 4x20 cm) + ressutura de episiotomia + colocação de tampão
vaginal. Foi readmitida na UTI ainda instável e com disfunção de múltiplos
órgãos e sistemas (SOFA = 16): hiperlactatemia, choque, coagulopatia e disfunção
cardíaca (hipocinesia difusa ao ecocardiograma, Fe 50%), hepática, renal,
neurológica, gastrointestinal (alto refluxo pela sonda nasogástrica) e
respiratória (SARA moderada) (Tabela 1). Iniciado correção de hipotermia,
reposição de cálcio e politransfusão (Tabela 1).
No 3º PP, apesar do desmame
de drogas vasoativas, mantinha sangramento difuso pela episiotomia. Pelo risco
de síndrome de Sheehan foi iniciada hidrocortisona. Durante a noite, ultrassonografia
evidenciou aumento da espessura da parede uterina. Visualizado sangramento
pulsátil em sutura de episiotomia, sendo novamente encaminhada para centro
cirúrgico para hemostasia + curetagem (suspeita de restos placentários) +
colocação de balão intrauterino e tampão vaginal. Na readmissão da UTI
encontrava-se hipertensa, sendo mantida com nitroprussiato de sódio, dobutamina
(disfunção cardíaca e piora da função renal, SVO2 não disponível) e ocitocina
(80UI/dia).
No dia seguinte apresentava-se
sem exteriorização de sangramentos, porém ainda grave e necessitando de
transfusões (Tabela 1), com nitroprussiato de sódio 3,6 mcg/Kg/min e dobutamina
desligada.
No 5º PP foi retirado o tampão
vaginal e o balão intra-uterino. Manteve Hb estável e melhora laboratorial,
apesar de coagulopatia persistente. Sem hipnóticos há 48h, apresentava apenas abertura
ocular ocasional sem contato.
Cursou com melena, abdome
distendido, algo tenso, porém com pressão intra abdominal de 13 mmHg (7º PP); sem
melhora do nível de consciência (Glasgow máximo de 8, AO 3 RV 1T RM 4),
eletroencefalograma com alentecimento difuso e tomografia computadorizada (TC)
de crânio sem alterações. Apresentava balanço hídrico acumulado muito positivo
apesar de receber 80mg/h de furosemida, sendo optado por tentar ultrafiltração
(UF). Durante UF apresentou bradicardia sinusal revertida com atropina, seguida
de choque (noradrenalina 0,1mcg/kg/min).
Manteve necessidade de noradrenalina
em doses crescentes, evoluindo com óbito no 9º PP.
Tabela
1: Fluxo de exames e transfusões recebidas
Exame
|
PP
|
1ºPP
|
2ºPP
|
3ºPP
|
4ºPP
|
5ºPP
|
6ºPP
|
7ºPP
|
8ºPP
|
9ºPP
|
Hb, g/dl
|
12,8
|
7,1
|
8,0/7,6/7,9
|
7,8
|
7,4
|
9,6
|
10,3
|
10,7
|
10,3
|
9,4
|
Leuc/µL
|
155000
(3/78/17)
|
21900
(2/81/15)
|
23970
(1/2/11/65/15)
|
11400
(2/76/16)
|
18400
(77/18)
|
23136
(4/66/17)
|
53200
(4/57/22%)
|
|||
Plaq/µL
|
212000
|
108000
|
51000
|
36000
|
48000
|
57000
|
80000
|
72000
|
||
TTPA
|
4,2
|
2
|
1,43
|
1,32
|
1,71
|
1,61
|
||||
RNI
|
>10
|
3,05
|
2,38
|
2,03
|
1,22
|
1,58
|
1,58
|
1,38
|
||
Fib, mg/dl
|
81
|
37/104
|
198
|
106/168
|
89
|
|||||
TGO/TGP, U/l
|
132/79
|
97/46
|
95/38
|
48/16
|
152/47
|
205/43
|
||||
BT/BD, mg/dl
|
7,16/5,25
|
10/7,52
|
9,08/6,93
|
6,37/4,58
|
10,5/7,46
|
11,3/8,5
|
||||
Ác. Úrico, mg/dl
|
9,3
|
9,5
|
||||||||
Alb, g/dl
|
1,8
|
1,7
|
||||||||
DHL, U/l
|
544
|
876
|
||||||||
Coombs direto
|
+
|
|||||||||
Ur, mg/dl
|
56
|
60
|
60
|
62
|
101
|
147
|
227
|
116
|
195
|
|
Cr, mg/dl
|
4,39
|
4,13
|
3,66
|
2,27
|
2,66
|
2,44
|
2,37
|
1,55
|
1,70
|
|
K, mEq/l
|
3,7
|
6
|
3,1
|
4,4
|
3,1
|
3,8
|
3,5
|
4,0
|
||
PCR, mg/dl
|
2,67
|
2,15
|
3,95
|
3,83
|
9,32
|
13,12
|
||||
Trop, ng/ml
|
3,33
|
2,33
|
0,43
|
|||||||
CK-MB, ng/ml
|
57,5
|
42,3
|
16,5
|
|||||||
pH
|
7,41
|
7,19
|
7,3
|
7,36
|
7,45
|
|||||
HCO3, mmol/l
|
24
|
14,5
|
20,2
|
26
|
33,4
|
|||||
BE
|
-0,4
|
-12,9
|
-5,9
|
0,2
|
8,2
|
|||||
Lact, mg/dl
|
46
|
87/52
|
55/33
|
23
|
25
|
36
|
36
|
59
|
45
|
|
Transfusões
|
2CH,
4 PFC, 6 CP e 6 crio.
|
2CH,
4PFC, 6 crio.
|
2
CH, 4 PFC, 6CP.
|
2CH,
4PF.
|
PP pós-parto, Hb hemograma,
Leuc leucograma, Plaq plaquetas, TTPA tempo de tromboplastina parcial ativado,
RNI razão normalizada internacional, Fib fibrinogênio, TGO/TGP transaminase
oxalacética e pirúvica, BT/BD bilirrubina total e direta , Alb albumina, DHL
desidrogenase lática, Ur uréia, Cr creatinina, K potássio, PCR proteína C
reativa, Trop troponina, CK-MB cratinofosfoquinase massa, Lact lactato, CH
concentrado de hemácias, CP concentrado de plaquetas, PFC Plasma fresco congelado, Crio
criopreciptado.
Diante do exposto
pergunta-se:
- Quais as hipóteses
diagnósticas mais prováveis para o caso?
- Que outras condutas
poderiam ter sido tomadas?
Tema muito interessante, principalmente porque casos de ginecologia e obstetrícia não são muito frequentes nas UTIs.
ResponderExcluirAcho que ela fez choque hemorrágico pelo trauma do parto e disfunção orgânica múltipla. Também pode ter tido nova piora por causa infecciosa.
Carlos M. - Brasília.
Caso muito complicado e imagino que tenha gerado bastante ansiedade da equipe durante o manejo intensivo, por se tratar de paciente jovem e puérpera.
ResponderExcluirNa minha opinião, acredito que a paciente tenha desenvolvido um quadro de hemólise microangiopática e nesse cenário faria como hipóteses: Síndrome HELLP, Eclâmpsia, Fígado Gorduroso Agudo da Gestação (FGAG) - lembrando ainda de SHU e PTT.
Acredito que no decorrer da internação a paciente tenha desenvolvido complicações sobrepostas à doença de base - como Choque Séptico com miocardio depressão e tenha evoluído com Disfunção de Múltiplos Órgãos e Sistemas.
Sem o diagnóstico de base, não sei se teria feito nada de diferente.
Michele, São Paulo
Opinião da pediatra: caso de síndrome de aspiração de meconio com necessidade de clampeio imediato do cordão umbilical e não estimulação até posicionar Rn sob fonte de calor radiante e aspirar VAS sob visualização direta. Iniciado procedimentos de reanimação Neonatal, porém sem boa resposta, já que o apgar ainda é baixo no 5 min. Diagnóstico do Rn: síndrome da aspiração meconial, anoxia neonatal. Causa do sofrimento fetal provável hellp materna.
ResponderExcluirGostaria como Endocrinologista atentar para o diagnóstico de Sindrome de Sheehan, muito bem pensado no caso acima. Pode nao ter sido a causa unica para o choque da paciente, logicamente, porem pode ter contribuído. É importante lembrar desta sindrome principalmente em casos de sangramento intenso peri e pós parto, ja que a hipofise na gravidez se torna mais hiperplasiada e mais suscetível a isquemia se baixo débito. A síndrome pode causar sintomas cronicos e agudos, alertados principalmente por taquicardia, hipotensão/choque, hiponatremia, náuseas e vomitos na fase aguda.
ResponderExcluirA conduta foi certissima, ja que na dúvida diagnóstica em uma situação de urgência, nao se deve postergar o uso de corticoide endovenoso a fim de esperar o diagnóstico definitvo, pois a demora na administração da medicação pode levar ao óbito.
Excelente caso! Parabéns a equipe pelo conteúdo do site!
Leticia Maxta- São Paulo