terça-feira, 10 de março de 2015

Complicações no puerpério - Caso clínico











Paciente do sexo feminino, 30 anos. Primeira gestação, a termo, relato de pré-natal sem intercorrências, porém com relato de episódios de sangramento gengival e várias visitas ao hospital por dor abdominal, com pico hipertensivo em uma delas.
Admitida no hospital com história de contrações uterinas e sangramento vaginal. Em avaliação apresentava dilatação máxima de colo uterino  e sangramento vaginal em pequena quantidade, evoluindo com parto vaginal. O recém-nascido apresentou Índice de Apgar 3 e 6, líquido amniótico com mecônio espesso (3+/4), sendo encaminhado a UTI neonatal.
Uma hora após o parto, a paciente apresentou sangramento intenso através da sutura da episiotomia paramediana. O útero estava contraído e foi encaminhada para ressutura no centro cirúrgico.  Após algumas horas, evoluiu com náuseas e astenia. Apresentava-se taquicárdica (FC 117bpm, ritmo sinusal) e hipotensa (PA 90/60mmHg), responsiva a expansão volêmica inicial. Notado discreto sangramento vaginal e abaulamento de episiorrafia, sendo encaminhada a UTI.

Nos exames de admissão observado queda importante de hemoglobina (Hb), coagulopatia, alterações de função renal e hepática (Tabela 1), com escore SAPS 3 de 70 e SOFA de 10. Foi transfundida (Tabela 1) e mantida em vigilância hemodinâmica e de sangramentos.
Realizada ultrassonografia de abdome/transvaginal: fígado sem alterações; pequena quantidade de líquido livre perihepático, periesplênico e em fossas ilíacas; útero globoso com dimensões aumentadas, medindo 17,3 x 7,3 x 9,4 cm (volume 502 cm3); ecotextura miometrial heterogênea e eco endometrial centrado, homogêneo, com espessura de até 1,1cm.
No 2º pós-parto (PP) evoluiu com choque refratário (noradrenalina 1,78 µg/kg/min e vasopressina 0,04 U/min) e abaulamento de episiotomia de 4 cm. Mantinha frequentes episódios de hipoglicemia. Mesmo julgando se tratar de choque distributivo com componente hipovolêmico pelo sangramento, foi iniciado antibiótico terapêutico empírico pela gravidade do quadro. Realizada intubação orotraqueal e encaminhada ao centro cirúrgico para drenagem de hematoma (achado intra-operatório: 4x20 cm) + ressutura de episiotomia + colocação de tampão vaginal. Foi readmitida na UTI ainda instável e com disfunção de múltiplos órgãos e sistemas (SOFA = 16): hiperlactatemia, choque, coagulopatia e disfunção cardíaca (hipocinesia difusa ao ecocardiograma, Fe 50%), hepática, renal, neurológica, gastrointestinal (alto refluxo pela sonda nasogástrica) e respiratória (SARA moderada) (Tabela 1). Iniciado correção de hipotermia, reposição de cálcio e politransfusão (Tabela 1).
No 3º PP, apesar do desmame de drogas vasoativas, mantinha sangramento difuso pela episiotomia. Pelo risco de síndrome de Sheehan foi iniciada hidrocortisona. Durante a noite, ultrassonografia evidenciou aumento da espessura da parede uterina. Visualizado sangramento pulsátil em sutura de episiotomia, sendo novamente encaminhada para centro cirúrgico para hemostasia + curetagem (suspeita de restos placentários) + colocação de balão intrauterino e tampão vaginal. Na readmissão da UTI encontrava-se hipertensa, sendo mantida com nitroprussiato de sódio, dobutamina (disfunção cardíaca e piora da função renal, SVO2 não disponível) e ocitocina (80UI/dia).
No dia seguinte apresentava-se sem exteriorização de sangramentos, porém ainda grave e necessitando de transfusões (Tabela 1), com nitroprussiato de sódio 3,6 mcg/Kg/min e dobutamina desligada.
No 5º PP foi retirado o tampão vaginal e o balão intra-uterino. Manteve Hb estável e melhora laboratorial, apesar de coagulopatia persistente. Sem hipnóticos há 48h, apresentava apenas abertura ocular ocasional sem contato.
Cursou com melena, abdome distendido, algo tenso, porém com pressão intra abdominal de 13 mmHg (7º PP); sem melhora do nível de consciência (Glasgow máximo de 8, AO 3 RV 1T RM 4), eletroencefalograma com alentecimento difuso e tomografia computadorizada (TC) de crânio sem alterações. Apresentava balanço hídrico acumulado muito positivo apesar de receber 80mg/h de furosemida, sendo optado por tentar ultrafiltração (UF). Durante UF apresentou bradicardia sinusal revertida com atropina, seguida de choque (noradrenalina 0,1mcg/kg/min).
Manteve necessidade de noradrenalina em doses crescentes, evoluindo com óbito no 9º PP. 




Tabela 1: Fluxo de exames e transfusões recebidas



Exame
PP
1ºPP
2ºPP
3ºPP
4ºPP
5ºPP
6ºPP
7ºPP
8ºPP
9ºPP
Hb, g/dl
12,8
7,1
8,0/7,6/7,9
7,8
7,4
9,6
10,3
10,7
10,3
9,4
Leuc/µL
155000 (3/78/17)
21900 (2/81/15)
23970
(1/2/11/65/15)

11400 (2/76/16)
18400 (77/18)
23136 (4/66/17)

53200
(4/57/22%)

Plaq/µL
212000
108000
51000

36000
48000
57000

80000
72000
TTPA

4,2
2
1,43
1,32
1,71



1,61
RNI

>10
3,05
2,38
2,03
1,22
1,58

1,58
1,38
Fib, mg/dl

81
37/104
198
106/168
89




TGO/TGP, U/l

132/79
97/46
95/38
48/16



152/47
205/43
BT/BD, mg/dl

7,16/5,25
10/7,52
9,08/6,93
6,37/4,58



10,5/7,46
11,3/8,5
Ác. Úrico, mg/dl

9,3

9,5






Alb, g/dl


1,8





1,7

DHL, U/l

544

876






Coombs direto

+








Ur, mg/dl

56
60
60
62
101
147
227
116
195
Cr, mg/dl

4,39
4,13
3,66
2,27
2,66
2,44
2,37
1,55
1,70
K, mEq/l


3,7
6
3,1
4,4
3,1
3,8
3,5
4,0
PCR, mg/dl

2,67
2,15


3,95
3,83

9,32
13,12
Trop, ng/ml


3,33
2,33





0,43
CK-MB, ng/ml


57,5
42,3





16,5
pH

7,41
7,19
7,3

7,36
7,45



HCO3, mmol/l

24
14,5
20,2

26
33,4



BE

-0,4
-12,9
-5,9

0,2
8,2



Lact, mg/dl

46
87/52
55/33
23
25
36
36
59
45
Transfusões

2CH, 4 PFC, 6 CP e 6 crio.
2CH, 4PFC, 6 crio.
2 CH, 4 PFC, 6CP.
2CH, 4PF.





PP pós-parto, Hb hemograma, Leuc leucograma, Plaq plaquetas, TTPA tempo de tromboplastina parcial ativado, RNI razão normalizada internacional, Fib fibrinogênio, TGO/TGP transaminase oxalacética e pirúvica, BT/BD bilirrubina total e direta , Alb albumina, DHL desidrogenase lática, Ur uréia, Cr creatinina, K potássio, PCR proteína C reativa, Trop troponina, CK-MB cratinofosfoquinase massa, Lact lactato, CH concentrado de hemácias, CP concentrado de plaquetas,  PFC Plasma fresco congelado, Crio criopreciptado.




Diante do exposto pergunta-se:

- Quais as hipóteses diagnósticas mais prováveis para o caso?

- Que outras condutas poderiam ter sido tomadas?
 



4 comentários:

  1. Tema muito interessante, principalmente porque casos de ginecologia e obstetrícia não são muito frequentes nas UTIs.
    Acho que ela fez choque hemorrágico pelo trauma do parto e disfunção orgânica múltipla. Também pode ter tido nova piora por causa infecciosa.
    Carlos M. - Brasília.

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  2. Caso muito complicado e imagino que tenha gerado bastante ansiedade da equipe durante o manejo intensivo, por se tratar de paciente jovem e puérpera.
    Na minha opinião, acredito que a paciente tenha desenvolvido um quadro de hemólise microangiopática e nesse cenário faria como hipóteses: Síndrome HELLP, Eclâmpsia, Fígado Gorduroso Agudo da Gestação (FGAG) - lembrando ainda de SHU e PTT.
    Acredito que no decorrer da internação a paciente tenha desenvolvido complicações sobrepostas à doença de base - como Choque Séptico com miocardio depressão e tenha evoluído com Disfunção de Múltiplos Órgãos e Sistemas.
    Sem o diagnóstico de base, não sei se teria feito nada de diferente.
    Michele, São Paulo

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  3. Opinião da pediatra: caso de síndrome de aspiração de meconio com necessidade de clampeio imediato do cordão umbilical e não estimulação até posicionar Rn sob fonte de calor radiante e aspirar VAS sob visualização direta. Iniciado procedimentos de reanimação Neonatal, porém sem boa resposta, já que o apgar ainda é baixo no 5 min. Diagnóstico do Rn: síndrome da aspiração meconial, anoxia neonatal. Causa do sofrimento fetal provável hellp materna.

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  4. Gostaria como Endocrinologista atentar para o diagnóstico de Sindrome de Sheehan, muito bem pensado no caso acima. Pode nao ter sido a causa unica para o choque da paciente, logicamente, porem pode ter contribuído. É importante lembrar desta sindrome principalmente em casos de sangramento intenso peri e pós parto, ja que a hipofise na gravidez se torna mais hiperplasiada e mais suscetível a isquemia se baixo débito. A síndrome pode causar sintomas cronicos e agudos, alertados principalmente por taquicardia, hipotensão/choque, hiponatremia, náuseas e vomitos na fase aguda.
    A conduta foi certissima, ja que na dúvida diagnóstica em uma situação de urgência, nao se deve postergar o uso de corticoide endovenoso a fim de esperar o diagnóstico definitvo, pois a demora na administração da medicação pode levar ao óbito.
    Excelente caso! Parabéns a equipe pelo conteúdo do site!

    Leticia Maxta- São Paulo

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