A
infusão de fluidos é uma das intervenções mais comumente usadas em pacientes
graves e parte fundamental do suporte hemodinâmico em unidades de terapia
intensiva. A despeito de diversos estudos recentes sobre o tema, a prática
atual sobre a administração de fluidos permanece altamente variável.
Dois grandes estudos observacionais ilustraram bem esse problema. Em 2010 Finfer e cols demostraram que os coloides foram as soluções mais usadas para reanimação, a despeito do maior custo e mais eventos adversos já conhecidos na época. E recentemente, em 2015, Cecconi e cols evidenciaram que a predição de fluidoresponsividade não é utilizada comumente e limites de segurança não são respeitadas durante as provas de volume. Tais achados mostram que a prática atual não parece levar em conta as evidências disponíveis e os riscos da intervenção não são adequadamente considerados.
Historicamente a administração de fluidos diretamente na circulação surgiu da necessidade de reverter a grave desidratação resultante da perda de líquidos devido a diarreia ou vômitos em pacientes com cólera. A introdução de coloide veio muito mais tarde, durante a Segunda Guerra Mundial, com a infusão de albumina em trauma e pacientes com queimaduras graves. Com a disponibilidade de diferentes soluções para uso clínico, a polêmica sobre a escolha entre cristaloides e coloides dominou por muito tempo a discussão e inicialmente se centrou na capacidade de cada solução para restaurar a estabilidade hemodinâmica e perfusão tecidual. Atualmente o foco de discussão tem se concentrado na segurança e eficácia de cada solução em promover a ressuscitação adequada e ao mesmo tempo melhorar os desfechos a longo prazo. Além do tipo de fluido, a forma como administrar e quando utilizar essa intervenção têm ganhado a atenção.
Outro aspecto atual na discussão
sobre reposição volêmica é o papel do glicocálix. Woodcock e cols em 2012
propuseram uma revisão do Modelo de Starling, que leva em conta não só a
composição do fluido intersticial e intravascular, mas também as
características da barreira vascular composta pelo glicocálix, membrana
endotelial com as junções intercelulares e a matriz extracelular. De acordo com
esse modelo, quando a barreira vascular se encontra intacta, o movimento transcapilar
é unidirecional e seria dependente principalmente da pressão hidrostática. O
retorno do líquido do interstício para o intravascular seria por meio dos vasos
linfáticos. Em caso de doenças inflamatórias, como a sepse, haveria comprometimento
de toda a barreira transcapilar, levando a acúmulo de líquido e proteínas no
interstício e depleção do volume intravascular. Esse novo modelo explica melhor
o motivo pelo qual a albumina e outros coloides sintéticos não alcançam o poder
expansor esperado quando comparado com cristaloides em pacientes graves. De
fato, estudos clínicos mostram que razão entre coloides: cristaloides
utilizadas para alcance de metas terapêuticas gira em torno de 1:1,3 -1,5 e não
de 1:3 como inicialmente postulado.
Os cristaloides são soluções de cátions
inorgânicos e pequenas moléculas orgânicas e/ou cloreto dissolvidas em água. A
mais comum é o soro fisiológico 0,9%, que tem concentrações de Na e Cl
ligeiramente maiores que o plasma, podendo levar a hipernatremia e acidose
hiperclorêmica quando infundido em grandes quantidades. Outras soluções cristaloides
apresentam concentração de eletrólitos semelhante ao do plasma e constituem
alternativa mais fisiológica em relação ao soro fisiológico 0,9%. São
conhecidas como soluções balanceadas, como o Ringer lactato e Plasma-Lyte.
Os coloides são soluções de eletrólitos
e macromoléculas orgânicas dissolvidos em água. Essas moléculas teoricamente são
retidas dentro do espaço intravascular por mais tempo e contribuem para maior
pressão osmótica. O primeiro coloide a ser usado foi a albumina humana, que
atualmente é disponível em diversas concentrações e é derivada do plasma
humano. Os coloides sintéticos são opções mais baratas em relação a albumina. A
classe mais usada é a dos hidroxietilamidos (HES), derivados da amilopectina. As
soluções de primeira geração apresentavam maior peso molecular e grau de
substituição (hidroxiacetilação da molécula de amido), além de maior
concentração. Essas características conferem maior interferência na coagulação
e disfunção renal. Outra classe de coloides são os dextrans, obtidos pelo
processamento de polímeros de glicose derivados de bactérias. Encontram-se em
desuso pelos efeitos colaterais. E por fim, as gelatinas que são obtidas a
partir da hidrólise do colágeno bovino.
Em relação a albumina, não há até o
momento evidências que suportem seu uso de forma disseminada em pacientes
graves. A controvérsia em relação a albumina surgiu em 1998, onde uma questionável
meta-análise sugeriu aumento de mortalidade com o seu uso. Mas em 2004, um
grande ensaio clínico randomizado e duplo cego, o SAFE, não demostrou
diferenças em termos de mortalidade quando se comparou albumina 4% com solução
salina em pacientes graves. Nesse estudo, o subgrupo de pacientes sépticos apresentou menor mortalidade, enquanto os pacientes com traumatismo craniano pior desfecho.
Recentemente foi publicado o estudo ALBIOS, que comparou o uso de albumina 20%
com cristaloides versus cristaloides em pacientes com sepse. No grupo da albumina,
o alvo era manter um nível sérico de 30g/l até a alta da UTI. Não houve melhora
em termos de mortalidade em 28 e 90 dias.
Em relação aos coloides sintéticos,
principalmente os HES, nos últimos anos começaram a ser publicados estudos que definitivamente
mostraram que essas soluções estão associadas com pior desfecho comparados aos
cristaloides. Em 2012, Perner e colaboradores mostraram aumento de mortalidade
em 90 dias e maior necessidade de terapia de substituição renal comparando HES
com Ringer lactato em pacientes com sepse. No mesmo ano, o estudo CHEST, que
incluiu 7000 pacientes graves, mostrou maior necessidade de terapia de
substituição renal em pacientes usando HES em comparação com salina. O estudo
CRISTAL de 2013 que comparou coloides em geral com cristaloides não mostrou
diferença de mortalidade em 28 dias, mas apresenta uma série de limitações
metodológicas. Diversas meta-analises recentes reforçam que o uso de HES não
traz benefício e está associado a piores desfechos.
Atualmente o foco de atenção tem se
direcionado a comparação entre soluções balanceadas e solução salina, que é
rica em cloreto. O uso de soluções ricas em cloreto pode exacerbar ou induzir
hipercloremia e acidose metabólica, pode provocar a vasoconstrição renal e
diminuição da taxa de filtração glomerular e diminuir o volume de diurese em
grandes cirurgias. Em um estudo prospectivo, aberto e sequencial, conduzido na
Austrália, pacientes graves receberam solução salina durante o período controle
e solução balanceada (Plasma-Lyte) intervenção. Houve redução na incidência de lesão
renal aguda e necessidade de terapia de substituição renal no período da
solução balanceada. Resultado semelhante vinha sendo mostrado em estudos
observacionais. Entretanto, recentemente o estudo SPLIT não conseguiu
reproduzir os achados em pacientes graves.
Como de maneira geral as soluções balanceadas tem potencial de reduzir
complicações, é prudente que sejam a primeira escolha.
Por fim, é importante ressaltar que
a natureza da solução é só uma das variáveis que devem ser levadas em conta no
momento da administração de fluidos. O momento e a quantidade de fluidos
infundido são fatores fundamentais capazes de influir no desfecho dos pacientes
graves.
# Texto escrito pelo Dr. Flávio Freitas - Doutor em Medicina pela Universidade Federal
de São Paulo (UNIFESP), Medico Intensivista diarista da UTI da
Disciplina de anestesiologia dor e terapia intensiva da UNIFESP #
Referências
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20950434
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/26162676
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/22290457
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/9677209
- http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa040232#t=article
- http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa1305727#t=article
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/22738085
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24108515
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23073953
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/26444692
- www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20924555
Muito bom! Valeu a leitura. ;)
ResponderExcluirMuito bom! parabéns!
ResponderExcluir