sábado, 8 de outubro de 2016

Reposição volêmica em revisão.


A infusão de fluidos é uma das intervenções mais comumente usadas em pacientes graves e parte fundamental do suporte hemodinâmico em unidades de terapia intensiva. A despeito de diversos estudos recentes sobre o tema, a prática atual sobre a administração de fluidos permanece altamente variável.


Dois grandes estudos observacionais ilustraram bem esse problema. Em 2010 Finfer e cols demostraram que os coloides foram as soluções mais usadas para reanimação, a despeito do maior custo e mais eventos adversos já conhecidos na época. E recentemente, em 2015, Cecconi e cols evidenciaram que a predição de fluidoresponsividade não é utilizada comumente e limites de segurança não são respeitadas durante as provas de volume. Tais achados mostram que a prática atual não parece levar em conta as evidências disponíveis e os riscos da intervenção não são adequadamente considerados.

Historicamente a administração de fluidos diretamente na circulação surgiu da necessidade de reverter a grave desidratação resultante da perda de líquidos devido a diarreia ou vômitos em pacientes com cólera. A introdução de coloide veio muito mais tarde, durante a Segunda Guerra Mundial, com a infusão de albumina em trauma e pacientes com queimaduras graves. Com a disponibilidade de diferentes soluções para uso clínico, a polêmica sobre a escolha entre cristaloides e coloides dominou por muito tempo a discussão e inicialmente se centrou na capacidade de cada solução para restaurar a estabilidade hemodinâmica e perfusão tecidual. Atualmente o foco de discussão tem se concentrado na segurança e eficácia de cada solução em promover a ressuscitação adequada e ao mesmo tempo melhorar os desfechos a longo prazo. Além do tipo de fluido, a forma como administrar e quando utilizar essa intervenção têm ganhado a atenção.

Outro aspecto atual na discussão sobre reposição volêmica é o papel do glicocálix. Woodcock e cols em 2012 propuseram uma revisão do Modelo de Starling, que leva em conta não só a composição do fluido intersticial e intravascular, mas também as características da barreira vascular composta pelo glicocálix, membrana endotelial com as junções intercelulares e a matriz extracelular. De acordo com esse modelo, quando a barreira vascular se encontra intacta, o movimento transcapilar é unidirecional e seria dependente principalmente da pressão hidrostática. O retorno do líquido do interstício para o intravascular seria por meio dos vasos linfáticos. Em caso de doenças inflamatórias, como a sepse, haveria comprometimento de toda a barreira transcapilar, levando a acúmulo de líquido e proteínas no interstício e depleção do volume intravascular. Esse novo modelo explica melhor o motivo pelo qual a albumina e outros coloides sintéticos não alcançam o poder expansor esperado quando comparado com cristaloides em pacientes graves. De fato, estudos clínicos mostram que razão entre coloides: cristaloides utilizadas para alcance de metas terapêuticas gira em torno de 1:1,3 -1,5 e não de 1:3 como inicialmente postulado.

Os cristaloides são soluções de cátions inorgânicos e pequenas moléculas orgânicas e/ou cloreto dissolvidas em água. A mais comum é o soro fisiológico 0,9%, que tem concentrações de Na e Cl ligeiramente maiores que o plasma, podendo levar a hipernatremia e acidose hiperclorêmica quando infundido em grandes quantidades. Outras soluções cristaloides apresentam concentração de eletrólitos semelhante ao do plasma e constituem alternativa mais fisiológica em relação ao soro fisiológico 0,9%. São conhecidas como soluções balanceadas, como o Ringer lactato e Plasma-Lyte.

Os coloides são soluções de eletrólitos e macromoléculas orgânicas dissolvidos em água. Essas moléculas teoricamente são retidas dentro do espaço intravascular por mais tempo e contribuem para maior pressão osmótica. O primeiro coloide a ser usado foi a albumina humana, que atualmente é disponível em diversas concentrações e é derivada do plasma humano. Os coloides sintéticos são opções mais baratas em relação a albumina. A classe mais usada é a dos hidroxietilamidos (HES), derivados da amilopectina. As soluções de primeira geração apresentavam maior peso molecular e grau de substituição (hidroxiacetilação da molécula de amido), além de maior concentração. Essas características conferem maior interferência na coagulação e disfunção renal. Outra classe de coloides são os dextrans, obtidos pelo processamento de polímeros de glicose derivados de bactérias. Encontram-se em desuso pelos efeitos colaterais. E por fim, as gelatinas que são obtidas a partir da hidrólise do colágeno bovino.

Em relação a albumina, não há até o momento evidências que suportem seu uso de forma disseminada em pacientes graves. A controvérsia em relação a albumina surgiu em 1998, onde uma questionável meta-análise sugeriu aumento de mortalidade com o seu uso. Mas em 2004, um grande ensaio clínico randomizado e duplo cego, o SAFE, não demostrou diferenças em termos de mortalidade quando se comparou albumina 4% com solução salina em pacientes graves. Nesse estudo, o subgrupo de pacientes sépticos apresentou menor mortalidade, enquanto os pacientes com traumatismo craniano pior desfecho. Recentemente foi publicado o estudo ALBIOS, que comparou o uso de albumina 20% com cristaloides versus cristaloides em pacientes com sepse. No grupo da albumina, o alvo era manter um nível sérico de 30g/l até a alta da UTI. Não houve melhora em termos de mortalidade em 28 e 90 dias.

Em relação aos coloides sintéticos, principalmente os HES, nos últimos anos começaram a ser publicados estudos que definitivamente mostraram que essas soluções estão associadas com pior desfecho comparados aos cristaloides. Em 2012, Perner e colaboradores mostraram aumento de mortalidade em 90 dias e maior necessidade de terapia de substituição renal comparando HES com Ringer lactato em pacientes com sepse. No mesmo ano, o estudo CHEST, que incluiu 7000 pacientes graves, mostrou maior necessidade de terapia de substituição renal em pacientes usando HES em comparação com salina. O estudo CRISTAL de 2013 que comparou coloides em geral com cristaloides não mostrou diferença de mortalidade em 28 dias, mas apresenta uma série de limitações metodológicas. Diversas meta-analises recentes reforçam que o uso de HES não traz benefício e está associado a piores desfechos.

Atualmente o foco de atenção tem se direcionado a comparação entre soluções balanceadas e solução salina, que é rica em cloreto. O uso de soluções ricas em cloreto pode exacerbar ou induzir hipercloremia e acidose metabólica, pode provocar a vasoconstrição renal e diminuição da taxa de filtração glomerular e diminuir o volume de diurese em grandes cirurgias. Em um estudo prospectivo, aberto e sequencial, conduzido na Austrália, pacientes graves receberam solução salina durante o período controle e solução balanceada (Plasma-Lyte) intervenção. Houve redução na incidência de lesão renal aguda e necessidade de terapia de substituição renal no período da solução balanceada. Resultado semelhante vinha sendo mostrado em estudos observacionais. Entretanto, recentemente o estudo SPLIT não conseguiu reproduzir os achados em pacientes graves.  Como de maneira geral as soluções balanceadas tem potencial de reduzir complicações, é prudente que sejam a primeira escolha.

Por fim, é importante ressaltar que a natureza da solução é só uma das variáveis que devem ser levadas em conta no momento da administração de fluidos. O momento e a quantidade de fluidos infundido são fatores fundamentais capazes de influir no desfecho dos pacientes graves.

# Texto escrito pelo Dr. Flávio Freitas - Doutor em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Medico Intensivista diarista da UTI da Disciplina de anestesiologia dor e terapia intensiva da UNIFESP #


Referências
  1. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20950434
  2. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/26162676
  3. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/22290457
  4. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/9677209
  5. http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa040232#t=article
  6. http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa1305727#t=article
  7. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/22738085
  8. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24108515
  9. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23073953
  10. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/26444692
  11. www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20924555

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