quarta-feira, 9 de setembro de 2015

É possível dormir dentro de uma UTI ?


 
O sono é considerado uma condição biológica essencial para manutenção da fisiologia, bem como do emocional e do bem-estar humano. Contudo, dormir na unidade de terapia intensiva tem sido relatado, pelos sobreviventes de doenças críticas, como de baixa qualidade e de grande estresse durante a internação (1).

Muitos são os fatores que contribuem para desestruturar o bom funcionamento da fisiologia do sono nesta população de internados, incluindo a própria doença, as terapêuticas invasivas praticadas dentro da unidade e principalmente o ambiente, repleto de instrumentos que geram barulhos, luzes e ruídos. Como resultado os pacientes apresentam uma série de alterações, como dificuldade de iniciar o processo de dormir, sono fragmentado, despertar muito precoce pela manhã, alteração do ciclo circadiano, delirium, entre outros (2). 

Como se constrói o sono normal? O sono é constituído de várias fases complementares e sequenciais, com duas predominantes: REM (rapid eyes moviment) e NREM (non-rapid eyes moviment). O NREM apresenta 3 estágios, totalizando 75 a 80% do tempo que uma pessoa passa dormindo, se diferenciando segundo a progressão de sua profundida. O primeiro estágio, N1, atua como a transição entre o estado desperto e o sono profundo. Neste período o ser humano pode ser acordado com facilidade, e é o momento em que começam a diminuir os movimentos oculares e a atividade muscular. Nesta fase é liberado o hormônio melatonina que induz a sonolência (depende de local escuro). O segundo estágio, N2, é a fase em que o metabolismo começa a ceder, a temperatura corporal abaixa, a frequência do coração diminui, a respiração torna-se mais lenta, a musculatura mais relaxada. É considerado um sono leve, e abrange 45 – 55% do total do tempo do período NREM. Sequencialmente o sono progride para o período N3, mais curto, porém mais importante para o organismo. É nesta fase que ocorre o processo anabólico, a restruturação fisiológica do organismo e dos tecidos, bem como o descanso. As ondas cerebrais são lentas, o metabolismo é muito reduzido, o consumo de oxigênio diminui de forma acentuada e ocorre liberação do hormônio de crescimento GH. Todas as 3 fases do período não REM apresentam ondas lentas no EEG. 

Após todo o processo acima citado, o sono progride para o estágio REM. Esta fase se caracteriza pela atividade cerebral de baixa amplitude e mais rápida, por episódios de movimentos oculares incessantes e de relaxamento muscular máximo. Tem duração de 20 – 25% do período total de sono, e acredita-se que seja a fase relacionada com os sonhos e com a fixação da memória do dia. Em um indivíduo normal, o sono não REM e o sono REM alternam-se ciclicamente ao longo da noite. O sono não REM e o sono REM repetem-se a cada 70 a 110 minutos, com 4 a 6 ciclos por noite. A distribuição dos estágios de sono durante a noite pode ser alterada por vários fatores, como: idade, ritmo circadiano, temperatura ambiente, ingestão de drogas ou por determinadas doenças. Mas normalmente o sono não REM concentra-se na primeira parte da noite, enquanto o sono REM predomina na segunda parte.

                Durante o processo de internação na UTI o sono pode ser alterado de várias maneiras. O tempo total parece ser próximo a de um indivíduo normal, em torno de 7 a 9 horas por dia (3, 4), contudo a fragmentação é muito acentuada, com os pacientes experimentando 6.2 despertares por hora (em média um despertar a cada 10 minutos) (2), o que contribui para a não progressão para as diversas fases evolutivas do sono, de tal forma que a restruturação fisiológica e o descanso não se completam, uma vez que o indivíduo não alcança a fase 3. A maior fase do sono acaba permanecendo nos períodos N1 e N2, que são consideradas mais superficiais.  Como consequência, os pacientes manifestam sonolência durante o dia, sendo que 50% dos doentes acabam completando o tempo total de sono (de 7 a 9 horas), durante o período diurno. Isto contribui para alteração do ciclo circadiano, que persiste meses após a alta da UTI (5).

                Em consequência da privação do sono, muitas são as consequências negativas que os pacientes podem apresentar, contribuindo para internação prolongada, aumento das morbidades e mortalidade (6,7).

1.       A resposta dos quimiorreceptores no centro respiratório é reduzida em pacientes privados de sono, o que contribui para a diminuição da resposta ventilatória intrínseca à hipóxia e hipercapnia, contribuindo para tempo de ventilação mecânica prolongada (8). Além disso, já foi demonstrado por Cheng and Tang (9) que a privação de sono favorece de forma significativa a perda de força respiratória em indivíduos saudáveis. Quando extrapolado para pacientes internados, pode contribuir para um eventual desmame difícil da ventilação mecânica.

2.       A privação de sono favorece no sistema cardiovascular a liberação de catecolaminas (adrenalina e noradrenalina), contribuindo para aumento da pressão arterial e frequência cardíaca. Já foi demonstrado que uma noite de sono mal dormida pode gerar aumentos de até 12 mmHg na pressão arterial em indivíduos saudáveis (10).

3.       A manifestação mais comum correlacionada ao sistema nervoso central é o aumento da chance de o paciente evoluir com delirium. Já foi demonstrado que o quadro confusional agudo aumenta o tempo de internação hospitalar, gera diminuição cognitiva (aumentando inclusive a chance de demência) e aumenta a mortalidade. O mais interessante é que a privação de sono contribui para o delirium, e o mesmo contribui para a manutenção do sono não reparador. O maior desafio para o intensivista consiste em escolher um fármaco eficaz para tratar os sintomas de agitação do delirium, uma vez que a maioria das drogas podem exacerbar distúrbios de sono, devido ao seu efeito inibitório no período de ondas lentas e no sono REM.

Referencia 16
 
4.       O sono não reparador contribui para inatividade do sistema imunológico aumentando o risco de infecção na UTI (11).

5.       Como ocorre alteração do ciclo circadiano, a liberação de hormônios é toda comprometida.  O aumento da liberação de cortisol e supressão de melatonina, perpetua a dificuldade de o paciente iniciar e manter o sono, bem como ocasiona alterações metabólicas como aumento do nível sérico de glicose e resistência à insulina. Fatos já comprovados que aumentam a mortalidade na UTI.

O Que realmente influência a privação de sono dentro da unidade de terapia intensiva? O principal contribuinte é o ambiente.

1.       Efeito dos barulhos: Considerado o principal estressante dos pacientes dentro da unidade e o maior fator atrapalhador do sono. A organização mundial de saúde recomenda que o hospital, durante a noite, produza ruídos que não ultrapassem 30 dB (12), no intuito de facilitar o descanso dos pacientes. É improvável que a UTI consiga manter níveis de ruídos adequados, pois a literatura mostra que ao longo do mundo, os ruídos dentro da unidade apresentam valores em torno de 50 dB (13). A tecnologia tem contribuído para o aumento das intensidades sonoras. Estudo conduzido por Busch – Vishnich (14) evidenciou que nas últimas décadas o ruído, ocasionado por alarmes das novas ferramentas de monitorização, aumentou em torno de 0,38 dB por dia e 0,42 dB ao ano, atingindo valores de até 70dB quando alarmando. Apesar de tudo que foi citado, ainda parece que o maior produtor de sons dentro da unidade fica por parte da equipe multiprofissional (15). Quando muitas pessoas estão atuando e conversando dentro da UTI os valores podem atingir até 84 dB.

2.       Efeito das interações entre pacientes e equipe: Por ser uma unidade monitorizada em tempo integral, se faz necessário coleta de dados como sinais vitais, BH, diurese, ajuste de medicações, infusão de drogas e remédios. Estes procedimentos contribuem demais para a dificuldade de sono dos doentes internados. Walker and Woods demonstraram que o paciente é acordado de 1 a 14 vezes por hora durante a noite pela equipe que presta assistência. Ocorre cerca de 40 – 60 interações ao longo de uma noite completa.  Enfermeiros chefes acreditam que cerca de 13,9% das interações poderiam não ocorrer (atendimentos desnecessários), garantindo melhor sono da população internada.

3.       Efeito das luzes: A produção de luz artificial, no ambiente de terapia intensiva, é muito maior do que a considerada ideal. Isto permite uma diminuição da produção de melatonina, hormônio responsável pela indução do sono. Além das horas do dia, a luz acaba permanecendo acessa durante longos períodos da noite, atrapalhando demais no bem-estar do paciente e no início do sono.

Concluindo, apesar de muito estudo e do conhecimento sobre as alterações do ambiente influenciando o sono dos pacientes internados, pouco foi feito no intuito de tentar ajustar estes fatores e favorecer um repouso adequado e tão importante para a melhora do indivíduo. Cabe aos profissionais, criar protocolos assistenciais no intuito de propiciar um ambiente menos agressivo e inóspito no que diz respeito ao paciente, como ajuste de alarmes e determinando momentos em que a luz devera permanecer acesa, bem como treinar a equipe multiprofissional para alterar o comportamento dentro da unidade, gerando assim, um ambiente mais humano, acolhedor, respeitoso e confortável para aqueles que estão internados. 



Referências
(12). Berglund BL. Guidelines for community noise. World Health Organisation, Geneva; 1999.
(16). http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25852963

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