quarta-feira, 18 de março de 2015

Esteatose hepática aguda da gestação






Considerada uma doença hepática aguda específica da gestação e tão rara ao ponto de que talvez você como intensivista ou obstetra nunca tenha tido a oportunidade de ver, aproveitamos a discussão de caso clínico sobre UTI obstétrica publicada nos dias 10 e 14 de março de 2015 e resolvemos estudar um pouco mais sobre o tema.



A esteatose hepática aguda da gestação (EHAG) é uma doença hepática específica da gravidez (1), definida pela infiltração de microvesiculas de gordura nos hepatócitos que ocorre na segunda metade da gestação, mais comumente no terceiro trimestre (1-3). É muito rara, acometendo 1:700-1:20.000 gestantes, e mais frequente em gestações múltiplas e possivelmente em pacientes com baixo peso (IMC < 20 Kg/m2) (1).  A mortalidade costuma ser superior a 85% (2,4), porém o reconhecimento precoce e a rápida interrupção da gestação têm melhorado o prognóstico da doença com mortalidade estimada de 10% em países com maiores recursos e 20% nos com menores (3).

A patogênese está diretamente relacionada à ausência ou diminuição de enzimas que participam da beta-oxidação mitocondrial dos ácidos graxos, em especial a 3-hidroxiacil-CoA desidrogenase de cadeias longas (LCHAD). Quando a oxidação dos ácidos graxos é comprometida, o peróxido de hidrogênio é produzido, diminuindo os níveis séricos maternos de antioxidantes. O estresse oxidativo provoca depósito excessivo de ácidos graxos de cadeia longa, tóxicos aos hepatócitos maternos, com consequente esteatose hepática microvesicular (1,3,4).

Os sintomas prodrômicos se iniciam de uma a varias semanas antes do parto e em 85% dos casos são constituídos por mal-estar, náuseas e vômitos. Após este período, episódios de hipoglicemia, desidratação, hiporexia, dor abdominal, sangramento gengival, cefaléia e icterícia podem ocorrer. A dor abdominal é frequente e pode ser difusa, epigástrica ou localizada no quadrante superior direito (3).  A icterícia frequentemente aparece vários dias após o início dos primeiros sintomas e pode ser sucedida por sinais de insuficiência hepática, como distúrbio de coagulação, hipoglicemia, encefalopatia hepática, sonolência e coma (1). No período pós-parto casos graves podem evoluir com necrose tubular aguda, pancreatite aguda, crises convulsivas, ascite, edema pulmonar, diabetes insipidus, sangramento gastrointestinal ou peritoneal, além de hipoglicemia intratável (3).

Metade das pacientes têm sinais de pré-eclampsia na apresentação ou durante o curso da doença (1,3) e o feto pode desenvolver sinais de sofrimento e morte iminente, como hipóxia, líquido amniótico meconial e monitoração eletrônica fetal com traçado categoria III, indicando necessidade de interrupção imediata da gestação (3).

As gestantes sempre cursam com elevações de aminotransferase geralmente não maiores que 500-600 U/L e elevações de bilirrubinas (1) com valores que variam entre 8-49 mg/dl (3). Plaquetopenia pode ocorrer mesmo sem coagulação intravascular disseminada associada.  Aos que cursam com coagulopatia, a queda de antitrombina III é marcante. Elevações nos níveis séricos de amônia, tempo de protrombina alargado e hipoglicemias ocorrem como reflexo da insuficiência hepática. Leucocitose, hiperuricemia e elevação de escórias nitrogenadas também são frequentes (1).

Os exames de imagem são primordialmente utilizados para excluir diagnósticos diferenciais, como infarto e hematoma hepático (1). À ultrassonografia, a visualização de hiperecogenicidade ajuda a confirmar o diagnóstico. Entretanto dificuldades técnicas são comuns (4).

O quadro clínico, os exames laboratoriais e de imagem são geralmente suficientes para o diagnóstico, sendo a realização da biópsia raramente necessária e associada a maior morbidade dada aos graves distúrbios de coagulação frequentemente presentes nas pacientes. As amostras de tecido geralmente demonstram infiltração difusa de microvesículas de gordura nos hepatócitos, acometendo principalmente as zonas 2 e 3, com rara ocorrência de necrose (1,4).

Para facilitar o diagnóstico foram criados os critérios de Swansea (Tabela 1). De acordo com o autor seis dos 14 critérios devem estar presentes e não deve existir outra explicação para a condição (3).



      Tabela 1: Critérios de Swansea.

   
      Tabela contida na referência 3.


O principal diagnóstico diferencial é feito com síndrome HELLP, que é classicamente caracterizada por hemólise microangiopática, elevação de enzimas hepáticas e plaquetopenia. Existe uma grande sobreposição clínica entre as doenças e em muitos casos a diferenciação pode ser impossível. A presença de insuficiência hepática com alterações como hipoglicemia, encefalopatia e coagulopatia são mais frequentes nos casos de EHAG (1).

Outra ferramenta útil para a diferenciação entre as doenças é a presença da tríade da EHAG composta por sintomas, exames laboratoriais e complicações. Os sintomas incluem náuseas persistentes e vômitos, dor epigástrica, e icterícia. Os achados laboratoriais mostram disfunção renal (creatinina acima de 1,5 mg/dl), coagulopatias, alterações da função hepática e hipoglicemia. As complicações incluem insuficiência renal, CIVD, ascite e encefalopatia (3).

O tratamento materno é apenas de suporte e envolve a correção da hipoglicemia e da coagulopatia, em que várias unidades de hemoderivados podem ser necessários (criopreciptado, plasma fresco congelado, plaquetas, concentrado de hemácias). O término da gravidez vai depender das condições fetais e a sua monitoração deve ser rigorosa. A indução de parto vaginal é possível nos casos em que a mãe e o feto estão estáveis e o parto poderá ser concluído nas primeiras 24 horas. Caso contrário o parto cesárea é a principal opção, lembrando sempre da administração concomitante de hemoderivados. Suporte intensivo prolongado pode ser necessário nos casos mais graves em que os pacientes evoluíram com coma e necessidade de ventilação mecânica, síndrome do desconforto respiratório, hemodiálise, nutrição parenteral associada à pancreatite, infecções ou reabordagens cirúrgicas devido sangramento secundários ao parto cesárea (1).

 A maioria das pacientes reverte os sintomas, com normalização dos exames laboratoriais em 6 a 21 dias (3), porém alguns poucos casos descritos na literatura evoluíra com insuficiência hepática com complicações neurológicas graves com hipertensão intracraniana e necessitaram de transplante hepático (4).   

Um estudo chinês acompanhou 25 pacientes com EHAG durante 54,5 meses. Os achados ultrassonográficos foram normais em 12 pacientes, aumento da ecogenicidade com eco grosseiro em 10 e leve infiltração hepática gordurosa e aumento da ecogenicidade em três. Cirrose hepática ou nódulos não foram observados em nenhum paciente e todos tiveram as funções hepática e renal normalizadas (2).

Após estabilização a mãe e criança devem ser submetidas ao teste molecular para LCHAD ou ao menos para a sua mutação G1528C, a mais frequente. A doença pode ocorrer em gestações subsequentes, mesmo em mulheres sem a mutação, sendo o acompanhamento com especialistas em medicina materno-fetal algo recomendável (1).





Referências:


  1. http://www.uptodate.com/contents/acute-fatty-liver-of-pregnancy?source=search_result&search=acute+fatty+liver+of+pregnance&selectedTitle=1~150
  2. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Acute+fatty+liver+of+pregnancy%3A+Over+six+months+follow-up+study+of+twenty-five+patients
  3. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25633398
  4. Montenegro, CAB, 1941 – Rezende, obstetrícia / Montenegro, CAB, Rezende Filho, J. – 11.ed. – [Reimpre.] – Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2011.

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