Considerada
uma doença hepática aguda específica da gestação e tão rara ao ponto de que
talvez você como intensivista ou obstetra nunca tenha tido a oportunidade de
ver, aproveitamos a discussão de caso clínico sobre UTI obstétrica publicada nos
dias 10 e 14 de março de 2015 e resolvemos estudar um pouco mais sobre o tema.
A
esteatose hepática aguda da gestação (EHAG) é uma doença hepática específica da
gravidez (1), definida pela infiltração de microvesiculas de gordura nos
hepatócitos que ocorre na segunda metade da gestação, mais comumente no
terceiro trimestre (1-3). É muito rara, acometendo 1:700-1:20.000 gestantes, e
mais frequente em gestações múltiplas e possivelmente em pacientes com baixo
peso (IMC < 20 Kg/m2) (1).
A mortalidade costuma ser superior a 85% (2,4), porém o reconhecimento
precoce e a rápida interrupção da gestação têm melhorado o prognóstico da
doença com mortalidade estimada de 10% em países com maiores recursos e 20% nos
com menores (3).
A
patogênese está diretamente relacionada à ausência ou diminuição de enzimas que
participam da beta-oxidação mitocondrial dos ácidos graxos, em especial a
3-hidroxiacil-CoA desidrogenase de cadeias longas (LCHAD).
Quando a oxidação dos
ácidos graxos é comprometida, o peróxido de hidrogênio é produzido, diminuindo os níveis
séricos maternos de antioxidantes. O estresse
oxidativo provoca depósito excessivo de ácidos graxos de
cadeia longa, tóxicos aos hepatócitos maternos, com consequente esteatose
hepática microvesicular (1,3,4).
Os sintomas prodrômicos se iniciam de uma a varias
semanas antes do parto e em 85% dos casos são constituídos por mal-estar, náuseas e vômitos. Após este período, episódios de hipoglicemia,
desidratação, hiporexia, dor abdominal, sangramento gengival, cefaléia e
icterícia podem ocorrer. A dor abdominal é frequente e pode ser difusa, epigástrica
ou localizada no quadrante superior direito (3). A icterícia frequentemente
aparece vários dias após o início dos primeiros sintomas e pode ser sucedida
por sinais de insuficiência hepática, como distúrbio de coagulação,
hipoglicemia, encefalopatia hepática, sonolência e coma (1). No período
pós-parto casos graves podem evoluir com necrose tubular aguda, pancreatite
aguda, crises convulsivas, ascite, edema pulmonar, diabetes insipidus,
sangramento gastrointestinal ou peritoneal, além de hipoglicemia intratável (3).
Metade
das pacientes têm sinais de pré-eclampsia na apresentação ou durante o curso da
doença (1,3) e o feto pode desenvolver sinais de sofrimento e morte iminente,
como hipóxia, líquido amniótico meconial e monitoração eletrônica fetal com
traçado categoria III, indicando necessidade de interrupção imediata da
gestação (3).
As
gestantes sempre cursam com elevações de aminotransferase geralmente não
maiores que 500-600 U/L e elevações de bilirrubinas (1) com valores que variam entre 8-49 mg/dl (3).
Plaquetopenia pode ocorrer mesmo sem coagulação intravascular disseminada
associada. Aos que cursam com
coagulopatia, a queda de antitrombina III é marcante. Elevações nos níveis
séricos de amônia, tempo de protrombina alargado e hipoglicemias ocorrem como
reflexo da insuficiência hepática. Leucocitose, hiperuricemia e elevação de
escórias nitrogenadas também são frequentes (1).
Os
exames de imagem são primordialmente utilizados para excluir diagnósticos
diferenciais, como infarto e hematoma hepático (1). À ultrassonografia, a
visualização de hiperecogenicidade ajuda a confirmar o diagnóstico. Entretanto
dificuldades técnicas são comuns (4).
O
quadro clínico, os exames laboratoriais e de imagem são geralmente suficientes
para o diagnóstico, sendo a realização da biópsia raramente necessária e
associada a maior morbidade dada aos graves distúrbios de coagulação
frequentemente presentes nas pacientes. As amostras de tecido geralmente
demonstram infiltração difusa de microvesículas de gordura nos hepatócitos,
acometendo principalmente as zonas 2 e 3, com rara ocorrência de necrose (1,4).
Para facilitar o diagnóstico foram criados os critérios
de Swansea (Tabela 1). De acordo com o autor seis dos 14 critérios devem estar
presentes e não deve existir outra explicação para a condição (3).
Tabela 1: Critérios de Swansea.
Tabela
contida na referência 3.
O
principal diagnóstico diferencial é feito com síndrome HELLP, que é
classicamente caracterizada por hemólise microangiopática, elevação de enzimas
hepáticas e plaquetopenia. Existe uma grande sobreposição clínica entre as
doenças e em muitos casos a diferenciação pode ser impossível. A presença de
insuficiência hepática com alterações como hipoglicemia, encefalopatia e
coagulopatia são mais frequentes nos casos de EHAG (1).
Outra ferramenta útil para a diferenciação entre as
doenças é a presença da tríade da EHAG composta por sintomas, exames
laboratoriais e complicações. Os sintomas incluem náuseas persistentes e vômitos, dor epigástrica, e icterícia. Os achados laboratoriais mostram disfunção renal
(creatinina acima de 1,5 mg/dl), coagulopatias,
alterações da função hepática e
hipoglicemia. As complicações incluem
insuficiência renal, CIVD,
ascite e encefalopatia (3).
O tratamento materno é apenas de suporte e envolve a
correção da hipoglicemia e da coagulopatia, em que várias unidades de
hemoderivados podem ser necessários (criopreciptado, plasma fresco congelado,
plaquetas, concentrado de hemácias). O término da gravidez vai depender das
condições fetais e a sua monitoração deve ser rigorosa. A indução de parto
vaginal é possível nos casos em que a mãe e o feto estão estáveis e o parto
poderá ser concluído nas primeiras 24 horas. Caso contrário o parto cesárea é a
principal opção, lembrando sempre da administração concomitante de
hemoderivados. Suporte intensivo prolongado pode ser necessário nos casos mais
graves em que os pacientes evoluíram com coma e necessidade de ventilação
mecânica, síndrome do desconforto respiratório, hemodiálise, nutrição
parenteral associada à pancreatite, infecções ou reabordagens cirúrgicas devido
sangramento secundários ao parto cesárea (1).
A
maioria das pacientes reverte os sintomas, com normalização dos exames
laboratoriais em 6 a 21 dias (3), porém alguns poucos casos descritos na
literatura evoluíra com insuficiência hepática com complicações neurológicas
graves com hipertensão intracraniana e necessitaram de transplante hepático (4).
Um
estudo chinês acompanhou 25 pacientes com EHAG durante 54,5 meses. Os achados ultrassonográficos
foram normais em 12 pacientes, aumento da ecogenicidade com eco grosseiro em 10
e leve infiltração hepática gordurosa e aumento da ecogenicidade em três. Cirrose hepática ou
nódulos não foram
observados em nenhum paciente e todos tiveram as funções
hepática e renal normalizadas (2).
Após
estabilização a mãe e criança devem ser submetidas ao teste molecular para LCHAD ou ao menos para a sua mutação G1528C, a mais
frequente. A doença pode ocorrer em gestações subsequentes, mesmo em mulheres
sem a mutação, sendo o acompanhamento com especialistas em medicina
materno-fetal algo recomendável (1).
Referências:
- http://www.uptodate.com/contents/acute-fatty-liver-of-pregnancy?source=search_result&search=acute+fatty+liver+of+pregnance&selectedTitle=1~150
- http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Acute+fatty+liver+of+pregnancy%3A+Over+six+months+follow-up+study+of+twenty-five+patients
- http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25633398
- Montenegro, CAB, 1941 – Rezende, obstetrícia / Montenegro, CAB, Rezende Filho, J. – 11.ed. – [Reimpre.] – Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2011.
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