quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Há necessidade da terapia precoce guiada por metas hemodinâmicas no tratamento do choque séptico?


Em 2001 Rivers e colaboradores publicaram um dos trabalhos mais citados e conhecidos em nossa aérea. Intitulado “Early goal-directed therapy in the treatment of severe sepsis and septic shock’”, o estudo comparou dois protocolos de ressuscitação precoce em pacientes sépticos com PAS < 90mmHg (após 20-30mL de fluidos) e/ou lactato  4 mmol/L. O grupo que recebeu o tratamento guiado por metas visando uma saturação venosa central de oxigênio (SvcO2) acima de 70% por meio de fluidos, concentrado de hemácias e dobutamina apresentou menor mortalidade hospitalar comparado ao grupo controle (30,5% vs. 46,5%, p = 0,009) [1]. Na figura 1 está o algoritmo de tratamento usado no estudo.

Figura 1- Protocolo EGDT [1]

Baseado nesse estudo de centro único, a terapia precoce guiada por metas (EGDT) logo se tornou padrão de atendimento em todo o mundo. Foi aprovado por grandes sociedades médicas e se tornou parte importante das recomendações da Surviving Sepsis Campaign de 2004, 2008 e 2012 [2]. No entanto, sempre existiu uma série de preocupações a respeito dos fundamentos que embasam a EGDT, além das questões inerentes às limitações do estudo.
O uso da pressão venosa central (PVC) para guiar a reposição de fluidos é um dos pontos mais polêmicos no algoritmo de tratamento da EGDT. Já está bem demostrado que a PVC não é capaz de predizer a resposta a infusão de fluidos [3]. Guiar a reanimação pela PVC pode levar a quantidade desnecessária de fluidos [4]. Além disso, os níveis de PVC recomendados pelo algoritmo estão associados a piora da microcirculação, lesão renal aguda e até mesmo mortalidade [5-7]. O uso liberal de transfusão de concentrado de hemácias é outro ponto passível de crítica. Além de ter efeito questionável em aumentar a oferta de oxigênio [8], já foi recentemente demostrado em pacientes com choque séptico que uso liberal não traz ganhos em termos de mortalidade, eventos isquêmicos e terapia de suporte [9]. O uso dobutamina também não é isento de riscos [10].
Treze anos depois do estudo do Dr. Rivers, foram publicados dois grandes estudos, o ProCESS e o ARISE [11, 12], demonstrando que EGDT não melhorou o prognóstico dos pacientes com sepse grave e choque séptico. Veja a comparação dos estudos no Quadro abaixo.
Por que os resultados foram diferentes? Além de questões a respeito da metodologia, diferentes populações e épocas diferentes, também se discute a definição de “Usual Care”, tratamento recebido pelos grupos controle nos estudos atuais [13]. É importante destacar que o ProCESS e ARISE não testaram se o reconhecimento precoce foi melhor que o reconhecimento tardio, nem se o pronto atendimento era melhor que o cuidado tardio. Todos pacientes tiveram abordagem precoce, receberam antibiótico no tempo apropriado e infusão razoável de fluidos (provavelmente por influência do estudo do Dr. Rivers e da Surviving Sepsis Campaign). Assim, esses novos estudos não enfraquecem os esforços para promover a conscientização sobre sepse, seu diagnóstico precoce e tratamento imediato.
Em breve, um novo estudo conduzido no Reino Unido será finalizado (ProMISe) e uma meta análise com todos está planejada. Por enquanto, podemos concluir com os resultados do ProCESS e o ARISE que os pacientes na fase inicial do choque séptico reconhecidos de imediato e que recebem prontamente fluidos para hipotensão e antibióticos intravenosos, não apresentam benefício adicional de reanimação à base de um protocolo guiado por metas hemodinâmicas.
Podemos ficar em dúvida se podemos adotar essa estratégia de suporte hemodinâmico menos agressiva em nosso país, já que nossa mortalidade se aproxima mais daquela reportada pelo estudo do Dr. Rivers que os 20% descrita nos estudos atuais. Entretanto, é pouco provável que qualquer estratégia hemodinâmica tenha efeito em nosso caso, já que o nosso principal problema é o acesso a assistência apropriada no tempo certo [14].  

Referências




Estudos

EGDT
ProCESS
ARISE
Local
EUA
EUA
Austrália (principal)
Período
Mar 1997 – Mar 2000
Mar 2008 – Abr 2013
Out 2008 – Abr 2014
Centros
1
31
51
Baseline

EGDT / Standard therapy
EGDT / Protocol-Based Standard Therapy / Usual Care
EGDT / Usual Care
Pacientes incluídos
263
1.351
1.600
Idade (anos)
67,1 ± 17,4 / 64,4 ± 17,1
60 ± 16,4 / 61 ± 16,1 / 62 ± 16,0
62,7 ± 16,4 / 63,1 ± 16,5
APACHE II 
21,4 ± 6,9 / 20,4 ± 7,4
20,8 ± 8,1 / 20,6 ± 7,4 / 20,7 ± 7,5
15,4 ± 6,5 / 15,8 ± 6,5
Lactato (mmol/l)
7,7 ± 4,7 / 6,9 ± 4,5
4,8 ± 3,1 / 5,0 ± 3,6 / 4,9 ± 3,1
6,7 ± 3,3/ 6,6 ± 2.8
Saturação venosa central de O2 (%)
48,6 ± 11,2 / 49,2 ± 13.3
71 ± 13%
72,7 ± 10,5
Fluídos antes da inclusão (mL)
--
2.254 ± 1.472 / 2.226 ± 1.363 / 2.083 ± 1.405
2.515 ± 1.244 / 2.591 ± 1.331
Tempo apresentação-randomização
1,3 ± 1,5 / 1,5 ± 1,7 (h)
197 ± 116 / 185 ± 112 / 181±97 (min)
2,8h / 2,7 (h)
Inclusão



Hiperlactatemia (%)
--
59,0 / 59,2 / 60,7
46,0 / 46,5
Hipotensão refratária (%)
--
 55,6 / 53,8 / 53,3
70,0 / 69,8
Ventilação mecânica (%)
--
13,7 / 14,6 / 13,8
9,0 / 8,0
Vasopressor (%)
--
19,1 / 16,8 / 15,1
21,8 / 21,7
Comorbidades



Hipertensão
68,4 / 66,4
58,8 / 58,3 / 59,4
-- / --
Diabetes
30,8 / 31,9
31,2 / 35,9 / 35,3
-- / --
Doença respiratória crônica
18,0 / 13,4
20,7 / 21,5 / 24,3
9,2 / 8,8
Insuficiência renal
21,4 / 21,9
16,2 / 13,2 / 18,2
4,3 / 3,8
Insuficiência cardíaca
36,7 / 30,2
12,3 / 11,4 / 12,3
-- /--
Foco da sepse



Respiratório
38,5 / 39,5
31,9 / 34,1 / 33,1
36,5 / 32,8
Urinário
25,6 / 27,7
22,8 / 20,2 / 20,6
18,7 / 20,1
Abdominal
3,4 / 4,2
15,7 / 12,8 / 11,2
8,0 / 7,6
Período de 0 – 6h
Ventilação mecânica invasiva (%)
53,0 / 53,8
26,4 / 24,7 / 21,7
22,2 / 22,4
Vasopressor (%)
27,4 / 30,3
54,9 / 52,2 / 44,1
66,6 / 57,8
Inotrópico (%)
13,7 / 0,8
8,0 / 1,1 / 0,9
15,4 / 2,6
Fluidos (ml)
4.981 ± 2.984 / 3.499 ± 2.438
2.805 ± 1.957 / 3.285 ± 1.743 / 2.279 ± 1.881
1.964 ± 1415 / 1.713 ± 1,401
Concentrado de hemácias (%)
64,1 / 18,5
14,4 / 8,3 / 7,5
13,6 / 7,0
Cateter venoso central (%)
--
93,6 / 56,5 / 57,9
61,9 (grupo controle)
Pressão arterial invasiva (%)
--
--
91,4 / 73,6
Pressão arterial média (mmHg)
95 ± 19 / 81 ± 18
76,9 ± 12,8 / 78,8 ± 15,4 / 76,1 ± 14,4
76,5 ± 10,8 / 75,3 ± 11,4
Pressão venosa central (mmHg)
13,8 ± 4,4 / 11,8 ± 6,8
--
11,4 ± 4,6 / 11,9 ± 5,7
Saturação venosa central de O2 (%)
77,3 ± 10 / 66,0 ± 15,5
--
75,9 ± 8,4 / NA
Lactato (mmol/l)
4,3 ± 4,2 / 4,9 ± 4,7
--
2,8 ± 3,1 / 2,9 ± 2,5
Desfechos
Ventilação mecânica (%)
55,6 / 70,6
36,2 / 34,1 / 29, 6
30,0 / 31,5
Tempo de ventilação mecânica
9,0 ± 11,4 / 9,0 ± 13,1 (dias)
6.4 ± 8.4 / 7.7 ± 10.4 / 6.9 ± 8.2 (dias)
62,2 (23,5 - 181,8) / 65,5 (23,0 - 157,9) (h)
Vasopressor (%)
36,8 / 51,3
60,4 / 61,2 / 53,7
76,3 / 65,8
Tempo de vasopressor
1,9 ± 3,1 / 2,4 ± 4,2
2.6 ± 1.6 / 2.4 ± 1.5 / 2.5 ± 1.6 (dias)
29,4 (12,9 - 61,0) / 34,2 (14,0 - 67,0) (h)
Terapia de substituição renal (%)
--
3,1 / 6,0 / 2,8
13,4 / 13,5
Tempo de terapia de substituição renal
--
7.1 ± 10.8 / 8.5 ± 12 / 8.8 ± 13.7 (dias)
57,8 (25,3 – 175,0) / 85,9 (29,3 – 182,9) (h)
Desfecho principal (mortalidade)
30,5 / 46,5 (hospitalar)
21,0 / 18,2 /18,9 (60 dias)
18,6 / 18,8 (90 dias)
Alguns dados interessantes:
- Pacientes do estudo do Dr. Rivers pareciam mais graves. Apresentavam mais comorbidades crônicas, como insuficiência cardíaca e insuficiência renal. O nível de lactato era maior e a saturação venosa central alcançava incríveis 48-49%. Além disso, a idade era pouco maior que os demais, bem como os casos de infecção pulmonar.
- Chama atenção o número maior de pacientes em VM no período de 0 - 6 horas no estudo do Dr. Rivers. Já pacientes em uso de vasopressor era menor (esse dado é estranho, já que na tabela de baseline do estudo diz que cerca de 50% dos pacientes apresentavam choque séptico).
- Pacientes do ProCESS e ARISE receberam fluidos antes da randomização. Se somado com aquele recebido nas 6 horas de tratamento, a quantidade não parece ser tão diferente daquela encontrada no estudo do Dr. Rivers, que não apresenta dados sobre fluidos antes da randomização. 

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