Em 2001
Rivers e colaboradores publicaram um dos trabalhos mais citados e conhecidos em
nossa aérea. Intitulado “Early
goal-directed therapy in the treatment of severe sepsis and septic shock’”,
o estudo comparou dois protocolos de ressuscitação precoce em pacientes sépticos
com PAS < 90mmHg (após 20-30mL de fluidos) e/ou lactato ≥ 4 mmol/L. O
grupo que recebeu o tratamento guiado por metas visando uma saturação venosa
central de oxigênio (SvcO2) acima de 70% por meio de fluidos,
concentrado de hemácias e dobutamina apresentou menor mortalidade hospitalar
comparado ao grupo controle (30,5% vs. 46,5%, p = 0,009) [1]. Na figura 1 está o algoritmo de
tratamento usado no estudo.
Figura 1- Protocolo EGDT [1]
Baseado nesse estudo de centro único, a terapia precoce guiada por metas (EGDT) logo
se tornou padrão de atendimento em todo o mundo. Foi aprovado por grandes
sociedades médicas e se tornou parte importante das recomendações da Surviving Sepsis Campaign de 2004, 2008
e 2012 [2]. No entanto, sempre existiu uma
série de preocupações a respeito dos fundamentos que embasam a EGDT, além das
questões inerentes às limitações do estudo.
O uso da
pressão venosa central (PVC) para guiar a reposição de fluidos é um dos pontos
mais polêmicos no algoritmo de tratamento da EGDT. Já está bem demostrado que a
PVC não é capaz de predizer a resposta a infusão de fluidos [3]. Guiar a reanimação pela PVC pode
levar a quantidade desnecessária de fluidos [4]. Além disso, os níveis de PVC
recomendados pelo algoritmo estão associados a piora da microcirculação, lesão
renal aguda e até mesmo mortalidade [5-7]. O uso liberal de transfusão de
concentrado de hemácias é outro ponto passível de crítica. Além de ter efeito
questionável em aumentar a oferta de oxigênio [8], já foi recentemente demostrado em
pacientes com choque séptico que uso liberal não traz ganhos em termos de
mortalidade, eventos isquêmicos e terapia de suporte [9]. O uso dobutamina também não é
isento de riscos [10].
Treze anos depois
do estudo do Dr. Rivers, foram publicados dois grandes estudos, o ProCESS e o
ARISE [11, 12], demonstrando que EGDT não melhorou
o prognóstico dos pacientes com sepse grave e choque séptico. Veja a comparação
dos estudos no Quadro abaixo.
Por que os
resultados foram diferentes? Além de questões a respeito da metodologia, diferentes populações e épocas diferentes,
também se discute a definição de “Usual
Care”, tratamento recebido pelos grupos controle nos estudos atuais [13]. É importante destacar que o ProCESS
e ARISE não testaram se o reconhecimento precoce foi melhor que o
reconhecimento tardio, nem se o pronto atendimento era melhor que o cuidado
tardio. Todos pacientes tiveram abordagem precoce, receberam antibiótico no
tempo apropriado e infusão razoável de fluidos (provavelmente por influência
do estudo do Dr. Rivers e da Surviving
Sepsis Campaign). Assim, esses novos estudos não enfraquecem os esforços
para promover a conscientização sobre sepse, seu diagnóstico precoce e
tratamento imediato.
Em breve, um
novo estudo conduzido no Reino Unido será finalizado (ProMISe) e uma meta
análise com todos está planejada. Por enquanto, podemos concluir com os
resultados do ProCESS e o ARISE que os pacientes na fase inicial do choque
séptico reconhecidos de imediato e que recebem prontamente fluidos para
hipotensão e antibióticos intravenosos, não apresentam benefício adicional de
reanimação à base de um protocolo guiado por metas hemodinâmicas.
Podemos ficar
em dúvida se podemos adotar essa estratégia de suporte hemodinâmico menos
agressiva em nosso país, já que nossa mortalidade se aproxima mais daquela reportada
pelo estudo do Dr. Rivers que os 20% descrita nos estudos atuais. Entretanto, é
pouco provável que qualquer estratégia hemodinâmica tenha efeito em nosso caso,
já que o nosso principal problema é o acesso a assistência apropriada no tempo certo
[14].
Referências
Estudos
|
|||
EGDT
|
ProCESS
|
ARISE
|
|
Local
|
EUA
|
EUA
|
Austrália
(principal)
|
Período
|
Mar 1997 – Mar 2000
|
Mar 2008 – Abr 2013
|
Out 2008 – Abr 2014
|
Centros
|
1
|
31
|
51
|
Baseline
|
|||
EGDT / Standard therapy
|
EGDT /
Protocol-Based Standard Therapy / Usual Care
|
EGDT / Usual Care
|
|
Pacientes incluídos
|
263
|
1.351
|
1.600
|
Idade (anos)
|
67,1 ±
17,4 / 64,4 ± 17,1
|
60 ± 16,4
/ 61 ± 16,1 / 62 ± 16,0
|
62,7 ±
16,4 / 63,1 ± 16,5
|
APACHE II
|
21,4 ± 6,9 / 20,4 ± 7,4
|
20,8 ± 8,1 / 20,6 ± 7,4 / 20,7 ± 7,5
|
15,4 ± 6,5 / 15,8 ± 6,5
|
Lactato (mmol/l)
|
7,7 ± 4,7 / 6,9 ± 4,5
|
4,8 ± 3,1
/ 5,0 ± 3,6 / 4,9 ± 3,1
|
6,7 ±
3,3/ 6,6 ± 2.8
|
Saturação venosa central de O2 (%)
|
48,6 ± 11,2 / 49,2 ± 13.3
|
71 ± 13%
|
72,7 ± 10,5
|
Fluídos antes da inclusão (mL)
|
--
|
2.254 ± 1.472 / 2.226 ±
1.363 / 2.083 ± 1.405
|
2.515 ±
1.244 / 2.591 ± 1.331
|
Tempo apresentação-randomização
|
1,3 ± 1,5 / 1,5 ± 1,7 (h)
|
197 ± 116 / 185 ± 112 / 181±97 (min)
|
2,8h / 2,7 (h)
|
Inclusão
|
|||
Hiperlactatemia (%)
|
--
|
59,0 / 59,2 / 60,7
|
46,0 / 46,5
|
Hipotensão refratária (%)
|
--
|
55,6 / 53,8 / 53,3
|
70,0 /
69,8
|
Ventilação mecânica (%)
|
--
|
13,7 / 14,6 / 13,8
|
9,0 / 8,0
|
Vasopressor (%)
|
--
|
19,1 /
16,8 / 15,1
|
21,8 /
21,7
|
Comorbidades
|
|||
Hipertensão
|
68,4 /
66,4
|
58,8 /
58,3 / 59,4
|
-- / --
|
Diabetes
|
30,8 / 31,9
|
31,2 / 35,9 / 35,3
|
-- / --
|
Doença respiratória crônica
|
18,0 /
13,4
|
20,7 /
21,5 / 24,3
|
9,2 / 8,8
|
Insuficiência renal
|
21,4 / 21,9
|
16,2 / 13,2 / 18,2
|
4,3 / 3,8
|
Insuficiência cardíaca
|
36,7 /
30,2
|
12,3 /
11,4 / 12,3
|
-- /--
|
Foco da sepse
|
|||
Respiratório
|
38,5 /
39,5
|
31,9 /
34,1 / 33,1
|
36,5 / 32,8
|
Urinário
|
25,6 / 27,7
|
22,8 / 20,2 / 20,6
|
18,7 / 20,1
|
Abdominal
|
3,4 / 4,2
|
15,7 /
12,8 / 11,2
|
8,0 / 7,6
|
Período de 0 – 6h
|
|||
Ventilação mecânica invasiva (%)
|
53,0 /
53,8
|
26,4 /
24,7 / 21,7
|
22,2 /
22,4
|
Vasopressor (%)
|
27,4 / 30,3
|
54,9 / 52,2 / 44,1
|
66,6 / 57,8
|
Inotrópico (%)
|
13,7 /
0,8
|
8,0 / 1,1
/ 0,9
|
15,4 / 2,6
|
Fluidos (ml)
|
4.981 ± 2.984 / 3.499 ± 2.438
|
2.805 ± 1.957 / 3.285 ± 1.743 / 2.279 ± 1.881
|
1.964 ± 1415 / 1.713 ± 1,401
|
Concentrado de hemácias (%)
|
64,1 /
18,5
|
14,4 /
8,3 / 7,5
|
13,6 / 7,0
|
Cateter venoso central (%)
|
--
|
93,6 / 56,5 / 57,9
|
61,9 (grupo controle)
|
Pressão arterial invasiva (%)
|
--
|
--
|
91,4 / 73,6
|
Pressão arterial média (mmHg)
|
95 ± 19 / 81 ± 18
|
76,9 ± 12,8 / 78,8 ± 15,4 / 76,1 ± 14,4
|
76,5 ± 10,8 / 75,3 ± 11,4
|
Pressão venosa central (mmHg)
|
13,8 ±
4,4 / 11,8 ± 6,8
|
--
|
11,4 ±
4,6 / 11,9 ± 5,7
|
Saturação venosa central de O2 (%)
|
77,3 ± 10 / 66,0 ± 15,5
|
--
|
75,9 ± 8,4 / NA
|
Lactato (mmol/l)
|
4,3 ± 4,2
/ 4,9 ± 4,7
|
--
|
2,8 ± 3,1
/ 2,9 ± 2,5
|
Desfechos
|
|||
Ventilação mecânica (%)
|
55,6 / 70,6
|
36,2 /
34,1 / 29, 6
|
30,0 /
31,5
|
Tempo de ventilação mecânica
|
9,0 ± 11,4 / 9,0 ± 13,1 (dias)
|
6.4 ± 8.4 / 7.7 ± 10.4 / 6.9 ± 8.2 (dias)
|
62,2 (23,5 - 181,8) / 65,5 (23,0 - 157,9) (h)
|
Vasopressor (%)
|
36,8 /
51,3
|
60,4 /
61,2 / 53,7
|
76,3 / 65,8
|
Tempo de vasopressor
|
1,9 ± 3,1 / 2,4 ± 4,2
|
2.6 ± 1.6 / 2.4 ± 1.5 / 2.5 ± 1.6 (dias)
|
29,4 (12,9 - 61,0) / 34,2 (14,0 - 67,0) (h)
|
Terapia de substituição renal (%)
|
--
|
3,1 / 6,0
/ 2,8
|
13,4 /
13,5
|
Tempo de terapia de substituição renal
|
--
|
7.1 ± 10.8 / 8.5 ± 12 / 8.8 ± 13.7 (dias)
|
57,8 (25,3 – 175,0) / 85,9 (29,3 – 182,9) (h)
|
Desfecho principal (mortalidade)
|
30,5 /
46,5 (hospitalar)
|
21,0 /
18,2 /18,9 (60 dias)
|
18,6 /
18,8 (90 dias)
|
Alguns
dados interessantes:
- Pacientes
do estudo do Dr. Rivers pareciam mais graves. Apresentavam mais comorbidades
crônicas, como insuficiência cardíaca e insuficiência renal. O nível de lactato
era maior e a saturação venosa central alcançava incríveis 48-49%. Além disso,
a idade era pouco maior que os demais, bem como os casos de infecção pulmonar.
- Chama
atenção o número maior de pacientes em VM no período de 0 - 6 horas no estudo
do Dr. Rivers. Já pacientes em uso de vasopressor era menor (esse dado é
estranho, já que na tabela de baseline do
estudo diz que cerca de 50% dos pacientes apresentavam choque séptico).
- Pacientes
do ProCESS e ARISE receberam fluidos antes da randomização. Se somado com
aquele recebido nas 6 horas de tratamento, a quantidade não parece ser tão
diferente daquela encontrada no estudo do Dr. Rivers, que não apresenta dados
sobre fluidos antes da randomização.
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