A decolagem e pouso
de um grande avião não são procedimentos simples, múltiplos detalhes devem ser
conferidos sistematicamente objetivando a segurança dos passageiros e da tripulação.
Na busca para minimizar as falhas humanas neste processo, a aviação criou um
checklist que deve ser cumprido antes de cada pouso e decolagem, uma lista com
perguntas feitas pelo copiloto e respondidas pelo piloto para verificar a
funcionalidade e se os itens indispensáveis para aquela determinada etapa do
voo estão ligados, desligados ou mesmo na posição correta. Ao envolver duas
pessoas no processo é criada redundância, outro método que reduz falhas.
Na unidade de
terapia intensiva, a condução da melhor prática clínica baseada em evidências também
não é simples (Figura 1) e a complexidade do paciente e o estresse do ambiente
propicia erros. Há uma estimativa que 16 mil mortes por ano nos EUA poderiam
ser evitadas se condutas já consagradas em grandes estudos fossem aplicadas
rotineiramente, como por exemplo o uso de volume corrente baixo na síndrome do
desconforto respiratório agudo e o diagnóstico precoce e tratamento adequado da
sepse. Essas são medidas relacionadas com redução de mortalidade mas que ainda
não são amplamente usadas, com resultados ainda mais desfavoráveis em países em
desenvolvimento.
Figura 1. Complexidade dos
cuidados na unidade de terapia intensiva.
Uma das formas para
driblar este problema é a criação de protocolos específicos, revisados periodicamente. Desta forma, pode-se
padronizar a condução de certas condições como desmame ventilatório, controle
glicêmico, entre outras. No entanto, em
casos mais complexos não é fácil a aplicação e aderência a estes protocolos.
Há mais de uma
década, Jean-Louis Vincent propôs um novo conceito, o “FAST HUG”, mnemônico que
faz referência a pontos principais que devem ser checados diariamente em
visitas à beira leito com participação ativa dos membros da equipe
multidisciplinar da UTI, os pontos contemplados e a justificativa para escolha
desses pontos, naquela época, foram:
Feeding: a desnutrição leva a pior desfechos na unidade
de terapia intensiva, desta forma os pacientes desnutridos ou em risco
nutricional devem ter plano nutricional traçado precocemente;
Analgesia: a dor afeta psicologicamente e
fisiologicamente, atrasando a recuperação;
Sedation: o excesso de sedação pode aumentar o risco de
polineuropatia, prolongar a permanência na UTI e aumentar os custos;
Thromboembolic Profhylaxis: a incidência de trombose venosa
profunda em pacientes que não recebem profilaxia varia de 13-31%, e esta
condição eleva a morbidade e mortalidade;
Head of the bed elevated: manter a cabeceira da cama
elevada 45 graus reduz a incidência de refluxo gastroesôfagico e de pneumonia
nosocomial;
U for Stress Ulcer Prevention: notadamente importante nos
pacientes em ventilação mecânica e com coagulopatia;
G for glucose control: Nesta época, o controle rígido da
glicemia com alvos entre 80-110 mg/dl se relacionou com redução da mortalidade.
Porém mais tarde um estudo randomizado evidenciou que alvo glicêmico maior se
relacionou com menor mortalidade e menor incidência de hipoglicemia.
Este conceito mnemônico
nada mais é do que um checklist, uma lista de itens ou critérios organizados de
maneira sistemática, permitindo a checagem individual de cada um.
Durante toda esta
década, vários estudos surgiram, com o objetivo de mostrar melhores desfechos após
a implantação deste processo. Wolff e colaboradores demostraram que o uso de
checklist no setor de emergência para pacientes admitidos com IAM ou AVC
aumentou a aderência a certos tratamentos, como uso de aspirina nas primeiras
horas do IAM e screening para disfagia nos pacientes com AVC. No campo
cirúrgico o maior exemplo é o World Health Organization Checklist for Safe
Surgery que demonstrou redução importante da mortalidade (1,5% para 0,8 %, p
0,003) após a instituição de itens simples como: confirmação do nome do
paciente, sítio cirúrgico, contagem de compressas, entre outros (Quadro1).
Quadro 1.Itens do checklist de
segurança cirúrgica
No cenário da
terapia intensiva as possibilidades para a criação de checklist são infinitas,
pois podem contemplar desde situações especificas até cuidados clínicos gerais.
Podemos citar, a implementação de checklist de desmame ventilatório o qual
consegue definir com sucesso os pacientes candidatos à extubação reduzindo
assim o tempo de ventilação mecânica e o checklist para cuidados de pacientes
em fim de vida, propiciando que menos pacientes recebam terapia inapropriada de
ressuscitação. Além disso, há a possibilidade da criação de pacotes (bundles)
de prevenção, como o bundle de prevenção de infecções de corrente sanguínea relacionada
a cateter, que contempla: lavagem das mãos, uso de paramentação completa durante
a passagem, limpeza com clorexidine, evitar sítio de punção femoral e remover
cateteres centrais que não são mais necessários.
Entretanto, os
estudos recentes que mostram benefícios com a utilização dos checklist de
cuidados gerais na UTI devem ser interpretados com cautela, pois a maioria é
unicêntrico e se baseia na análise simples do
“antes e depois” da implementação,
sem levar em consideração que neste período outras melhorias possam ter influenciado no desfecho favorável.
Um estudo em
andamento pode deixar mais claro os benefícios esperados com a aplicação de um
checklist de segurança. Trata-se de um estudo brasileiro com randomização em
cluster de 118 unidades de terapia intensiva, as unidades randomizadas para a
intervenção passarão a realizar diariamente visitas a beira leito com a realização
de um checklist. Os itens foram escolhidos baseados na melhor evidencia clinica
atual (Figura 2).
Figura 2. Checklist diário
Cada item será lido
em voz alta pela enfermeira e respondido pelos participantes da equipe multidisciplinar.
Além disso, o médico deverá informar o planejamento diário para cada paciente, e
a conclusão deste planejamento deverá ser checada por volta das 15-17 horas
pela enfermeira do leito (Figura 3).
Figura 3.Planejamento diário e
conferência.
A aderência ao
protocolo será avaliada mensalmente e os resultados serão enviados à cada UTI
participante. O objetivo primário será avaliar a redução da mortalidade em 60
dias após a intervenção.
Em resumo, a transferência
do conceito do checklist de outros setores como aviação e indústria para a área
médica tem potenciais benefícios, principalmente em relação à segurança do
paciente, aumento da aderência à certas condutas clinicas e protocolos, além de
fortalecer a postura da equipe multidisciplinar na UTI. Porém deve ser aplicado
com cuidado, pois não deve limitar ou substituir o julgamento clínico, já que o
intensivista, diferente do piloto de avião, está diante de uma série de
combinações de doenças e evoluções clinicas e pode ter que escolher entre
várias condutas possíveis.
Referências.
- ww.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/15942334
- http://www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMoa0810625
- http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16990087
- http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/15487958
- http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/15197128
- http://www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMsa0810119
- http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/17192537
- http://www.implementationscience.com/content/pdf/s13012-014-0190-0.pdf
Nathaly, muito bom. Gostei muito de ver tema de gestão de pacientes graves aqui no blog. A aplicabilidade e utilidade de checklists no cuidado de pacientes graves é tema muito importante. Em situação complexas o uso de checklist é importante para que o responsável pela elaboração do plano terapêutico não esqueça do fundamental quando envolto por multiplos dados e detalhes. Aplicar checklist é simples, construir checklist é muito complexo. A informação deve ser restrita a no máximo 8 a 9 itens sob o risco de o instrumento virar um desrespeitado papel para marcar "X". Nunca será possível contemplar todos os aspectos do paciente nestes instrumentos, mas eles ajudam um equipe bem formada e dimensionada a executar de forma mais linear suas funções. E já que que toquei neste tema, o bem mais precioso das UTIs são as pessoas, tanto aqueles sob as quais os checklist e protocolos são aplicados, quanto aquelas que os aplicam.
ResponderExcluirParabens pelo post. Sugestão de leitura para quem gosta do tema é o envolvente livro CHECKLIST - como fazer as coisas bem feitas, do médico Atul Gawande.
Por falar no Atul Gawande, tem um link de uma palestra sobre este tema no TED, ai vai: http://www.ted.com/talks/atul_gawande_how_do_we_heal_medicine?language=pt-br#t-509800
ResponderExcluirParabéns Nathaly, o texto está muito bem escrito e é um tema bem interessante.
ResponderExcluirOutro recurso mnemônico interessante para ajudar na avaliação diária do paciente é o "SUSPEITA PARA O BEM".
Em que:
S - Sedação: avaliar necessidade de ajuste de dose ou possibilidade de suspensão de sedativos.
U - Úlcera: presença de profilaxia para gastropatia erosiva aguda.
S - Suspensão (elevação) da cabeceira: manter cabeceira entre 30-45º para pacientes em VM.
P - Períneo: avaliar possibilidade de retirada de sonda vesical de demora.
E - Escara: prevenir lesões através de mudanças de decúbito e tratar as presentes.
I - Infecção de cateter: avaliar sinais de infecção local e avaliar possibilidade de desinvasão.
T - TVP: checar se em uso de profilaxia farmacológica ou mecânica.
A - Alimentação: checar se aporte calórico adequado, avaliar tolerância e tempo de jejum.
P - Pressão de vias aéreas: certificar se pressão de platô < 30cmH2O.
A - Analgesia: certificar se paciente recebe analgesia adequada quando necessário.
R - Retirar do leito: avaliar possibilidade de deambular ou sentar na poltrona.
A - Antibiótico: espectro adequado? Possibilidade de suspensão ou descalonamento?
O - Oftalmoproteção: proteção contra úlcera de córnea em pacientes rebaixados ou sedados.
B - Balonete: Checar pressão de balonete do tubo orotraqueal (25-30mmHg)
E - Extubação: Protocolo de desmame diário.
M - Metabólico: Controle glicêmico.
Ainda poderíamos associar um "COM" no início da frase ("COM SUSPEITA PARA O BEM"), em que:
COM - Comorbidades: avaliar doenças preexistentes e possibilidade de de conciliação medicamentosa.
Filho e Whestphal em Manual prático de Medicina intensiva. 5ed. 2008.
Ah... O "COM" foi uma contribuição muito interessante dada pelo querido Dr Wilson Filho, grande intensivista de Manaus.
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